Para já, ficam algumas ideias essenciais para reflexão.
Regressando ao acórdão, sabemos que estava em causa a escolha da pena justa para dois homens que foram condenados por crimes de violência doméstica e sequestro. A vítima, ex-mulher de um dos arguidos, manteve por dois meses uma relação extraconjugal com o outro arguido, tendo terminado essa relação por vontade dela. Ao longo de vários meses, a vítima foi perseguida pelo ex-amante, que a confrontava no local de trabalho e a ia ameaçando por mensagens, utilizando a posse de filmagens de teor sexual da vítima para a pressionar a reatar a relação ou, pelo menos, a manter relações sexuais com ele (o que a vítima recusou). O ex-amante acabou por contar o caso ao marido da vítima (o outro arguido), tendo ocorrido a separação do casal em março de 2015. O marido não terá ficado apaziguado com o fim da relação, pois enviou também mensagens insultuosas e ameaçadoras à vítima. O casal tem uma filha menor, à qual o pai disse várias vezes que queria matar a mãe e matar-se a seguir. O ex-marido da vítima tinha uma depressão (anterior aos factos), tinha estado internado e saído contra parecer médico. No dia 29 de junho de 2015, os dois arguidos, em conjunto (ainda que não de modo previamente combinado), encurralaram a vítima; de seguida, o arguido X (ex-marido), estando a vítima agarrada pelo arguido Y (ex-amante), agrediu-a violentamente com uma moca cheia de pregos. Aproveitando um escorregão do ex-marido e alguma distração dos arguidos, a vítima conseguiu fugir e pedir ajuda. Não sabemos o que se teria passado, caso os arguidos não tivessem sido interrompidos. Mas sabemos que o ex-marido da vítima mantinha várias armas de fogo em casa.
O Tribunal Judicial de Felgueiras entendeu que a culpa era muito diminuta e que não havia perigo de reincidência, pelo que seria bastante a aplicação de uma pena suspensa. Esta decisão – face ao que sabemos da violência doméstica, da sua caracterização sociocultural e do perfil dos arguidos – é altamente discutível e, na minha opinião, muito provavelmente temerária face ao perigo real destes dois arguidos. Contudo, a decisão da primeira instância utiliza argumentação dogmática penalista (do pouco que se sabe, pois não temos o texto integral da primeira condenação) sendo por isso, em princípio, compatível com a lei e a constituição.
Infelizmente, o cenário agravou-se drasticamente no Tribunal da Relação do Porto. A fundamentação transcrita em cima é – entre muitas outras coisas – perigosa. Sabemos que o machismo mata. E não se trata de uma frase simbólica. O facto de existirem expectativas rígidas sobre o papel das mulheres na sociedade – as mulheres devem ser mais caseiras, não devem sair sozinhas, muito menos à noite, as mulheres devem ser recatadas, as mulheres devem ser boas mães e boas donas de casa, as mulheres devem sujeitar-se à vontade dos maridos, as mulheres são a face visível da honra dos homens, pelo que é crucial manter um forte controlo sobre o comportamento sexual da mulher, já que a virtude da mulher é o espelho do caráter do homens, entre outras – são fonte de conflitos sérios nas relações de intimidade e, muitas vezes, as razões da violência e do homicídio.
Em textos futuros, irei falar-vos dos maridos que matam as mulheres porque elas se recusam a ter sexo com eles (mas, infelizmente, ainda há juristas que acham que podem falar de um “dever de manter relações sexuais na constância do casamento”), bem como das decisões judiciais que o afirmam, ignorando frontalmente a proteção constitucional da liberdade sexual. Vou falar-vos dos maridos que matam as mulheres porque não são boas donas de casa (mas ainda há quem ache muito bem que haja livros só para meninas, dedicados a temas domésticos), e dos maridos que matam as mulheres porque elas têm casos (ou eles inventam que têm). Mas a lei ainda fala do dever de fidelidade (mais uma vez, como se a constituição previsse exceções conjugais à liberdade sexual) e a honra do homem ainda hoje é, principalmente em meios menos urbanos, o reflexo (im)perfeito da suposta virtude da mulher. Também vou falar dos acórdãos que explicam a violência doméstica ou o homicídio com a recusa de sexo da mulher, ou com o facto de ser desleixada com as suas tarefas domésticas. De como os tribunais vão considerando compreensível que o marido mate a mulher adúltera, mas já aplicam penas pesadas às mulheres que – pelas mesmas razões – matam os maridos. Se estão chocad@s com esta decisão, preparem-se. Não é completamente inédita. É só mais ousada do que as outras, nas quais, sob a capa de argumentos “jurídicos”, se vai dizendo mais ou menos o mesmo.
Estes contextos não são “normais”, embora possam ocorrer em números preocupantes. Estes contextos não são desejáveis – implicam um afastamento da normatividade e colocam em causa bens jurídicos muito valiosos – devem ser censurados, combatidos. Estes contextos não são irrelevantes na escolha da pena, podem ser ponderados. O que não podem é ser tomados como normalidade numa decisão judicial, nem valorados de modo positivo, como se o ideal atual fosse a apologia da mulher virtuosa e honesta, associada a uma forte repressão do adultério, sendo então compreensível e desculpável a violência exercida pelo marido (e pelo amante, já agora!) contra a mulher adúltera.
Desde já, como mulher, tenho que reagir a esta decisão, e tenho que gritar, na plenitude da minha liberdade:
– Não aceito esta argumentação, que é machista, é discriminatória (contrária à constituição), mas pior, muito pior, é opressiva das mulheres, e é extremamente perigosa para a vida de tantas mulheres;
– Não aceito que um juiz, em representação do Estado, fale por mim, em nome de tod@s nós, de lapidação e do homicídio por honra da mulher adúltera em tons de normalidade, quase saudosistas;
– Não aceito que a minha liberdade sexual tenha um valor distinto da dos homens, não aceito que o meu comportamento sexual, livre, esteja ligado à honra ou à virilidade dos homens;
– Não aceito, por isso, que o exercício da minha liberdade sexual seja visto como pretexto para a violência e para o homicídio.
Quando um juiz fala, é o Estado que fala, fala em nome de tod@s nós (os juízes decidem de acordo com a constituição e em nome do povo). A democracia só funciona quando os juízes respeitam e refletem os novos contextos sociais democraticamente construídos, reconhecidos na Constituição e tutelados pela lei. Não funciona quando os juízes vivem no passado e decidem com base nas suas convicções pessoais. Em meu nome, pela nossa saúde, pela vida e pela liberdade das mulheres portuguesas, espero uma reflexão séria por parte da sociedade e do Conselho Superior de Magistratura, em resposta a este caso, como símbolo de um problema maior e mais amplo, na sociedade, e nos tribunais.