Não apenas a corrupção económica ou enquanto ilícito criminal mas à corrupção em sentido amplo, total e até filosófico; tudo o que corrompe os valores éticos e jurídicos sociais/societais. Igualmente, referimo-nos à Justiça lato sensu, à do judicial/judiciário mas também à política (contributiva e distributiva) e social e bem assim, à "distribuição" igualitária da cidadania e da dignidade.
Outros 'blogs':
http://procidade.blogspot.com/
http://ardinarices.blogspot.com/
Tribunal cita Bíblia para justificar violência doméstica sobre mulher adúltera
Acórdão da Relação do Porto cita, ainda, o Código Penal de 1886 e civilizações em que o adultério é punido com morte
"O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte."
Estas e outras considerações constam das cerca de 20 páginas do acórdão da Relação do Porto, a que o Jornal de Notícias teve acesso.
A vítima foi agredida pelo marido e sequestrada pelo amante, alvo de perseguição e ameaças por parte de ambos, mas o tribunal de Felgueiras condenou os dois homens a pena suspensa por violência doméstica. O Ministério Público recorreu para a Relação, que manteve a sentença, justificando a decisão com passagens bíblicas e do Código de 1886.
Ainda não foi há muito tempo que a lei penal punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a mata-se. (…) Com estas referências pretende-se apenas acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, justificam os juízes desembargadores Neto de Moura e Maria Luísa Abrantes.
O caso remonta a novembro de 2014, quando uma mulher casada teve um relacionamento extraconjungal, que terminou ao fim de dois meses. O amante passou a persegui-la, inclusive no local de trabalho e através de mensagens de telemóvel, tendo acabado por revelar o caso ao marido. O casal separou-se e, a partir daí, a mulher passou a ser alvo das ameaças dos dois. Em junho do ano seguinte, a vítima foi sequestrada pelo amante, que telefonou ao ex-marido para um encontro dos três, no qual a mulher acabaria por ser agredida por este último com uma moca com pregos.
Foi a deslealdade e imoralidade sexual da assistente que fez o arguido [ex-marido] cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado de revolta que praticou o ato de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida”, sublinha, ainda, o acórdão.
Acórdão da Relação do Porto. Juiz já tinha recorrido à Bíblia antes
23/10/2017, 19:181.151
47
Neto de Moura, o juiz desembargador que assinou o polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto, já tinha recorrido a citações da Bíblia num acórdão anterior, escreve o jornal Expresso.
Partilhe
Neto de Moura, o juiz desembargador que assinou o polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto que cita a Bíblia e o Código Penal de 1886 para atenuar um crime de violência doméstica devido ao “adultério” da mulher, já tinha recorrido a citações da Bíblia num acórdão anterior, também relativo a um caso de violência doméstica, escreve o jornal Expresso.
Nesse acórdão, datado de junho de 2016, lê-se que “uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral”. Por isso, considerou Neto de Moura, “não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos”.
Acórdão"desculpabiliza, legitima e naturaliza a violência"
Em entrevista à TSF, a socióloga Isabel Ventura faz duras críticas ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto que justificou a atenuação de pena de violência doméstica com passagens da Bíblia.
"Parece-me evidente que neste caso, o Tribunal desrespeitou a Convenção de Istambul, que Portugal assinou, ratificou e implementou", começa por afirmar à TSF Isabel Ventura, autora de uma tese de doutoramento onde analisou os discursos judiciais em casos de violência sexual.Isabel Ventura mostra-se preocupada com o teor do acórdão da Relação do Porto
Em causa está um acórdão do Tribunal da Relação do Porto, com data de 11 de outubro, redigido pelo juiz desembargador Neto de Moura, e assinado também por Maria Luísa Arantes, a que o Jornal de Notícias teve acesso (pode consultar aqui o documento na íntegra), e que confirma a condenação de dois homens, o marido e o amante, a penas suspensas por violência doméstica. O acórdão justifica a atenuação da pena recordando que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e que poder haver alguma compreensão "perante a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher". O melhor da TSF no seu email
O acórdão cita a Bíblia e o Código Penal de 1886, que punia o homem com uma pena pouco mais que simbólica caso matasse a mulher em caso de adultério. No documento lê-se ainda "há sociedades em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte" e que o adultério da mulher é "um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem".
Para a socióloga Isabel Ventura "os factos que reportam a este acórdão são extremamente violentos e o que a Relação do Porto faz é naturalizar e desculpabilizar as ações extremamente violentas de duas pessoas, em particular de uma, mas são dois agressores, que cometeram um conjunto de atos quer de perseguição, de sequestro e de agressões físicas extremamente violentas".Isabel Ventura defende que acórdão está a "legitimar a violência"
"O que o Tribunal da Relação do Porto acaba por fazer, com o seu discurso, é desculpabilizar, legitimar e naturalizar a violência masculina nos casos em que as mulheres não cumprem esses papéis", critica Isabel Ventura.
"A nossa sociedade é extremamente heterogénea. No entanto, penso que podemos dizer que ninguém ou quase ninguém aceitaria que um homem pudesse assassinar a sua esposa porque ela teve um caso extraconjugal. Parece-me extremamente grave e muito preocupante que uma instituição de Justiça reproduza ideias tão anacrónicas em 2017", acrescenta.
Portugal foi o primeiro membro da União Europeia a ratificar este documento conhecido como a Convenção de Istambul, cuja assinatura está aberta a todos os países do mundo.
---------------
actualizações
__________
E o Regime Jurídico-constitucional português como e para quem fica?...
«Por outro lado, a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente. Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.
Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.
Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher. Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida.»
No dia 11 de outubro de 2017 – sim, é mesmo 2017, e não 1617 – o Tribunal da Relação do Porto proferiu o Acórdão onde se podem ler estas passagens. São passagens escritas pelo relator, o Juiz Desembargador Neto de Moura, assinadas pela Juíza Desembargadora Maria Luísa Arantes, e podem consultar o acórdão, em texto integral, aqui.
Esta decisão deveria deixar-nos a todos e a todas muitíssimo preocupad@s. Não sendo, exatamente, um caso inédito de decisão judicial machista ou que perpetua uma visão machista e repressiva do papel da mulher na sociedade (e, por conseguinte, do papel do homem também, já que o machismo é opressor dos dois géneros), esta decisão consegue superar as nossas piores expectativas no que toca ao bom senso, ponderação, capacidade crítica e respeito pela constituição (que esperaríamos dos nossos tribunais). O tema é sério, é grave, e convoca-nos a todos e todas para uma reflexão mais profunda sobre o amor, o casamento, e a violência – enquanto fenómenos socioculturais – e, correspondentemente, sobre os limites constitucionalmente impostos ao sistema legal e aos tribunais quando são chamados a regular certos aspetos ou dimensões do que pertence, em primeira linha, ao nosso núcleo mais íntimo de privacidade e liberdade. A seriedade do tema pede que seja feita uma análise calma e profunda e, por isso, a Capazes vai reunir e publicar, nos próximos dias, uma série de textos com perspetivas diversas sobre o tema. Iremos também apresentar uma queixa junto do Conselho Superior de Magistratura e junto da Comissão para a Igualdade.
Para já, ficam algumas ideias essenciais para reflexão.
Regressando ao acórdão, sabemos que estava em causa a escolha da pena justa para dois homens que foram condenados por crimes de violência doméstica e sequestro. A vítima, ex-mulher de um dos arguidos, manteve por dois meses uma relação extraconjugal com o outro arguido, tendo terminado essa relação por vontade dela. Ao longo de vários meses, a vítima foi perseguida pelo ex-amante, que a confrontava no local de trabalho e a ia ameaçando por mensagens, utilizando a posse de filmagens de teor sexual da vítima para a pressionar a reatar a relação ou, pelo menos, a manter relações sexuais com ele (o que a vítima recusou). O ex-amante acabou por contar o caso ao marido da vítima (o outro arguido), tendo ocorrido a separação do casal em março de 2015. O marido não terá ficado apaziguado com o fim da relação, pois enviou também mensagens insultuosas e ameaçadoras à vítima. O casal tem uma filha menor, à qual o pai disse várias vezes que queria matar a mãe e matar-se a seguir. O ex-marido da vítima tinha uma depressão (anterior aos factos), tinha estado internado e saído contra parecer médico. No dia 29 de junho de 2015, os dois arguidos, em conjunto (ainda que não de modo previamente combinado), encurralaram a vítima; de seguida, o arguido X (ex-marido), estando a vítima agarrada pelo arguido Y (ex-amante), agrediu-a violentamente com uma moca cheia de pregos. Aproveitando um escorregão do ex-marido e alguma distração dos arguidos, a vítima conseguiu fugir e pedir ajuda. Não sabemos o que se teria passado, caso os arguidos não tivessem sido interrompidos. Mas sabemos que o ex-marido da vítima mantinha várias armas de fogo em casa.
O Tribunal Judicial de Felgueiras entendeu que a culpa era muito diminuta e que não havia perigo de reincidência, pelo que seria bastante a aplicação de uma pena suspensa. Esta decisão – face ao que sabemos da violência doméstica, da sua caracterização sociocultural e do perfil dos arguidos – é altamente discutível e, na minha opinião, muito provavelmente temerária face ao perigo real destes dois arguidos. Contudo, a decisão da primeira instância utiliza argumentação dogmática penalista (do pouco que se sabe, pois não temos o texto integral da primeira condenação) sendo por isso, em princípio, compatível com a lei e a constituição.
Infelizmente, o cenário agravou-se drasticamente no Tribunal da Relação do Porto. A fundamentação transcrita em cima é – entre muitas outras coisas – perigosa. Sabemos que o machismo mata. E não se trata de uma frase simbólica. O facto de existirem expectativas rígidas sobre o papel das mulheres na sociedade – as mulheres devem ser mais caseiras, não devem sair sozinhas, muito menos à noite, as mulheres devem ser recatadas, as mulheres devem ser boas mães e boas donas de casa, as mulheres devem sujeitar-se à vontade dos maridos, as mulheres são a face visível da honra dos homens, pelo que é crucial manter um forte controlo sobre o comportamento sexual da mulher, já que a virtude da mulher é o espelho do caráter do homens, entre outras – são fonte de conflitos sérios nas relações de intimidade e, muitas vezes, as razões da violência e do homicídio.
Em textos futuros, irei falar-vos dos maridos que matam as mulheres porque elas se recusam a ter sexo com eles (mas, infelizmente, ainda há juristas que acham que podem falar de um “dever de manter relações sexuais na constância do casamento”), bem como das decisões judiciais que o afirmam, ignorando frontalmente a proteção constitucional da liberdade sexual. Vou falar-vos dos maridos que matam as mulheres porque não são boas donas de casa (mas ainda há quem ache muito bem que haja livros só para meninas, dedicados a temas domésticos), e dos maridos que matam as mulheres porque elas têm casos (ou eles inventam que têm). Mas a lei ainda fala do dever de fidelidade (mais uma vez, como se a constituição previsse exceções conjugais à liberdade sexual) e a honra do homem ainda hoje é, principalmente em meios menos urbanos, o reflexo (im)perfeito da suposta virtude da mulher. Também vou falar dos acórdãos que explicam a violência doméstica ou o homicídio com a recusa de sexo da mulher, ou com o facto de ser desleixada com as suas tarefas domésticas. De como os tribunais vão considerando compreensível que o marido mate a mulher adúltera, mas já aplicam penas pesadas às mulheres que – pelas mesmas razões – matam os maridos. Se estão chocad@s com esta decisão, preparem-se. Não é completamente inédita. É só mais ousada do que as outras, nas quais, sob a capa de argumentos “jurídicos”, se vai dizendo mais ou menos o mesmo.
Estes contextos não são “normais”, embora possam ocorrer em números preocupantes. Estes contextos não são desejáveis – implicam um afastamento da normatividade e colocam em causa bens jurídicos muito valiosos – devem ser censurados, combatidos. Estes contextos não são irrelevantes na escolha da pena, podem ser ponderados. O que não podem é ser tomados como normalidade numa decisão judicial, nem valorados de modo positivo, como se o ideal atual fosse a apologia da mulher virtuosa e honesta, associada a uma forte repressão do adultério, sendo então compreensível e desculpável a violência exercida pelo marido (e pelo amante, já agora!) contra a mulher adúltera.
Desde já, como mulher, tenho que reagir a esta decisão, e tenho que gritar, na plenitude da minha liberdade:
– Não aceito esta argumentação, que é machista, é discriminatória (contrária à constituição), mas pior, muito pior, é opressiva das mulheres, e é extremamente perigosa para a vida de tantas mulheres;
– Não aceito que um juiz, em representação do Estado, fale por mim, em nome de tod@s nós, de lapidação e do homicídio por honra da mulher adúltera em tons de normalidade, quase saudosistas;
– Não aceito que a minha liberdade sexual tenha um valor distinto da dos homens, não aceito que o meu comportamento sexual, livre, esteja ligado à honra ou à virilidade dos homens;
– Não aceito, por isso, que o exercício da minha liberdade sexual seja visto como pretexto para a violência e para o homicídio.
Quando um juiz fala, é o Estado que fala, fala em nome de tod@s nós (os juízes decidem de acordo com a constituição e em nome do povo). A democracia só funciona quando os juízes respeitam e refletem os novos contextos sociais democraticamente construídos, reconhecidos na Constituição e tutelados pela lei. Não funciona quando os juízes vivem no passado e decidem com base nas suas convicções pessoais. Em meu nome, pela nossa saúde, pela vida e pela liberdade das mulheres portuguesas, espero uma reflexão séria por parte da sociedade e do Conselho Superior de Magistratura, em resposta a este caso, como símbolo de um problema maior e mais amplo, na sociedade, e nos tribunais.
Sem comentários:
Enviar um comentário