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domingo, 27 de novembro de 2016

O Portugal dos "doutores"

Rubrica: ALMANAQUE DA MEDIOCRIDADE

Ou como se mantêm delírios de classe e de grandeza num país sub-desenvolvido, historicamente pobre, que nem episodicamente que fosse largou a cauda da Europa; num país onde não há apenas um rei que vai nu, antes são múltiplos os que se julgam réis e não sabem que vão nus; num país onde a quantidade de doutores e engenheiros é directamente proporcional ao seu histórico sub-desenvolvimento:

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[Jornal Público, 19 de Abril de 2007 - Kathleen Gomes; Apesar de não directamente relacionado com o tema 
de «A Filosofia no Ensino Secundário», não resisti a publicar este interessante texto do Jornal "Público".]
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É tão português quanto a sardinha assada, a roupa à janela ou "passar pelas brasas". Para um inglês, muito provavelmente, a expressão "I"m going to go through the heats" faz tanto sentido como ter "Dr." ("doctor") impresso no cartão de crédito antes do nome. Ou seja, sentido nenhum.
(...)
O historiador Rui Tavares inventou um nome para isso, numa recente crónica no PÚBLICO: "titulocracia". A recente polémica em torno da licenciatura do engenheiro-não-engenheiro José Sócrates veio lembrar-nos a importância do que chamamos às pessoas quando não as chamamos (apenas) pelo nome. Veio lembrar-nos que somos um país de "doutores" e "engenheiros", nem todos legítimos (mas, porventura, não exactamente ilegítimos, já que podemos escolher a forma como queremos ser tratados num impresso bancário sem que ninguém nos peça habilitações), um país onde o aparato da forma de tratamento denuncia o nosso sentido das aparências. 
(...)

"É porque não somos um país de doutores", responde o sociólogo Manuel Villaverde Cabral. "Somos um país onde os diplomas universitários e os estudos em geral são um bem muito escasso. Que foi escassíssimo durante muito tempo. Temos os níveis de escolaridade mais baixos da Europa - de longe."
Não é o único a pensar assim. Maria Manuel Mota, 35 anos, investigadora do Instituto de Medicina Molecular com doutoramento feito em Londres e pós-doutoramento em Nova Iorque - que lhe deram, também, um currículo em informalidade anglo-saxónica -, nota que "fomos um país sem educação durante muitos anos, estamos a dar os primeiros passos". É como que um deslumbramento nosso, isto do "senhor doutor"? "É isso. É um bocado novo-riquismo." 
O "doutor" democratizou-se

João de Pina Cabral, antropólogo especializado em identidade social e pessoal, define os títulos académicos como "símbolos de um novo estatuto burguês", a par dos "casamentos pomposos, os BMWs pretos, as gravatas brilhantes, os cabelos louros, as férias no Brasil..." A sua linhagem histórica remonta aos "processos de constituição e de chegada ao poder da burguesia nos meados do século XIX". Acontece que, com a massificação do ensino universitário privado em Portugal, nas décadas 80 e 90 - "em que milhares e milhares de pessoas, cujos pais eram oriundos de meios mais ou menos populares, social e culturalmente oprimidos, tiveram acesso a formas de vida que eles identificam como burguesas, com o correspondente estatuto social" - o "doutor" democratizou-se, banalizou-se. Dito de outro modo: "ser "doutor" já não chega", hoje, para distinguir alguém.
(...)
De Tony ao Prof. Cavaco
A importância do título é visível, desde logo, na classe política. Em França, o Presidente da República é tratado por "monsieur le président" ou "monsieur Chirac", o equivalente a "senhor" em português. Em Inglaterra idem aspas: "Ninguém se lembraria de chamar ao Blair "doctor"", nota Manuel Villaverde Cabral. (Mais: o primeiro-ministro inglês é Tony, do mais familiar que pode haver). Em Portugal, por contraste, diz-se "Professor Marcelo" ou "Professor Cavaco", diz Villaverde Cabral, "como se isso acrescentasse uma mais-valia". Segundo o sociólogo, isso denota "a pouca valorização", entre nós, do político profissional e da classe política em geral. Ou seja, o título académico é uma forma de compensar o "menor respeito" que o "imaginário colectivo" tem pela classe política, notabiliza-a. Daí a "prevalência de uma classe política portuguesa com uma qualificação enorme, exagerada, quase anormal por comparação com outros países", conclui Villaverde Cabral.(...)"


"O PAÍS DOS DOUTORES E ENGENHEIROS
A primeira surpresa para um estrangeiro que aterre em Portugal pode ser o número anormal de médicos que existe no país. Um ouvido atento em qualquer café de Lisboa, à hora das refeições, poderá contar pelo menos uma dúzia de: “Como está, doutor?”, “O que é que lhe apetece comer, senhor doutor?” (…)
Em Portugal, basta ter passado pelas salas de aula de uma universidade para obter o título de doutor. E, muitas vezes, nem é preciso tanto. Uma pessoa que ocupe um cargo de alta importância, ou que tenha, simplesmente, um ar de executivo, pode ser tratada por doutor pelo empregado do restaurante e, claro, pelos seus subordinados.
Quando não é doutor, pode ser engenheiro ou arquitecto. E se o empregado se engana, é possível que o próprio doutor, engenheiro ou arquitecto se encarregue de o corrigir. (…) A muitos portugueses soa ridículo, especialmente aos mais jovens. “Somos o país dos doutores e engenheiros”, dizem os críticos, com ironia. A ironia ainda é maior quando os números dizem que apenas dez por cento da população activa portuguesa possui formação universitária, a taxa mais baixa dos países da OCDE, cuja média é de 23 por cento. Ou, pensando melhor, talvez não seja tão irónico: aqui pode estar a chave do mistério de um tratamento tão diferencial a quem se limitou a frequentar a universidade.
No século XIX e no início do XX, os (poucos) filhos da burguesia e dos grandes proprietários rurais que conseguiam fazer estudos superiores regressavam à terra e eram conhecidos como “doutores”, senhores distintos e merecedores de grande reverência. A denominação manteve-se, apesar da democratização, e continua a ter o mesmo significado: é uma forma de admiração, diferença e superioridade que, em muitos casos, os próprios beneficiários se empenham em manter. Mesmo quando não querem aceitar este tratamento, os portugueses vêem-se obrigados a utilizá-lo, por estar tão enraizado. (…) - in, Courrier internacional, nº 102, Março 2007"
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14/09/2009 Por Fernando Moreira de Sá 

Hoje dei de caras com um cartaz da CDU na minha freguesia cujo nome da candidata surgia da seguinte forma: “Dr.ª. fulana de tal”. Olhei segunda e terceira vez e imediatamente pensei: “está dado o mote para a minha próxima posta no Aventar”.
O meu Pai, farmacêutico de formação e profissão, tinha por hábito advertir algumas pessoas que o interpelavam por “Senhor Doutor” do facto de não ser esse o seu nome de baptismo. Logo de seguida, ironicamente, explicava o processo de baptismo, etc e tal. Foi com ele que aprendi a não gostar dessa “cagança” tão portuguesa. Mais tarde, quando a idade começou a avançar, comecei a ser tratado em determinados locais pelo mesmo “Senhor Doutor” e lá começava eu a explicar que não era, que não tinha ainda acabado o curso e mesmo que o tivesse, etc e tal. Ao ponto de ter deixado de ser cliente de um determinado restaurante da Maia por causa disso – o fulano, dono do dito, começou a tratar-me por doutor, após lhe dizer que não o era, passei a ser engenheiro e a seguir, arquitecto! Após terminar a licenciatura, começou novamente o massacre. Numa primeira fase expliquei que “Doutor” era o meu médico, depois anunciei que não passava receitas e, por fim, desisti tendo como resultado começar a ficar farto.
Neste país de “doutores” e muito respeitinho, a maralha péla-se por ser tratada pelo “Dr.” e nem vos digo a quantidade de vezes que recebo mails, sobretudo de trabalho, cuja assinatura surge como “fulano de tal, Dr.”, assim mesmo, sem tirar nem pôr, pondo a nu os complexos de inferioridade que habitam no mais estranho dos seres(...)"

O Cínico


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