O dito que efetivamente conheci na mina infância nas terras da beira-Cávado (bacias do baixo Cávado) era este:
- "Falo eu que sou juiz que vos cago no nariz"
Numa recolha de "rimas de tradição oral", cantilenas e similares, o autor (Machado.ND) inclui a versão ou variante do refrão - e que é a que dá o que dá o título a este 'post', "Falo eu que sou juiz pela ponta do nariz" - e coloca-a nas terras de Guimarães, Barcelos e Braga (Ave e Cávado) sem, contudo, a datar. Quanto ao significado - ou hermenêutica - não será arriscado avançar com estas possibilidades: tratava-se da crítica a quem falava do que não sabia ou não podia e além disso se sobrepunha aos demais, "falando pela ponta do nariz" (inopinadamente e sem ciência).
Perguntando-me - epistemologicamente, claro - sobre a origem e razão de ser da variante que ouvi recorrentemente desde a minha tenra infância (anos 50-60 - séc. XX), "Falo eu que sou juiz vos cago no nariz", teria que fazer um exercício de reflexão para arriscar uma ou duas respostas:
a) esta versão do "refrão" é mais política e denuncia a crítica a posições e ou juízos arbitrários, unilaterais e autoritários;
b) nos anos 50 - 60 do século passado, o Corporativismo "plebiscitado" de Salazar contava com três, a caminho de quatro décadas;
c) mas as pessoas a quem mais ouvia este "dito" não eram as que teriam idade para serem meus pais - nascidas de 1925 - 1930 para diante - eram as que tinham idade para serem meus avós, nascidos a partir de 1900, como era o caso concreto da minha avó Maria de Abreu Matos ou do meu tio-avô "Gaimunto" (Raimundo),
d) sendo discutível ou até pouco crível que tenha sido a "Ditadura" plebiscitada a 33 a dar aso a esta preciosidade da literatura popular que tinha a múltipla função de denúncia, protesto e desabafo (ou catarse). A criação/depuramento do "refrão" teria que ter tido lugar ou na I República ou ainda nos tempos da Monarquia Constitucional.
Trabalhando com o que sabemos da história e ainda à luz de acervos hemerotecários, resultará pacífico que havia mais liberdade de expressão - e menos condenações por crimes de opinião - no último meio-século da Monarquia Constitucional de que em toda a história das repúblicas (1910 a 2017).
Também no que toca à história de juízes e julgados, além de uma matriz que não se resumia a "juízes letrados" e uma organização judiciária estrita de Comarcas e Tribunais como a atual, até à I República havia uma cultura de responsabilidade/responsabilização jurídico-constitucional dos Juízes no desempenho das suas funções.
Curiosamente, foi a República, a da Laicidade e dos Valores e da Ética Republicanos, o regime que se auto-propunha como o regime renovador restaurador dos direitos políticos - de cidadania e individuais, que se comprometia a pôr cobro ao que restava de privilégios dinásticos, foi este Regime que veio estender aos Juízes no desempenho da sua função uma garantia até então apenas consignada a dois grupos socias: as crianças e os cidadãos portadores de deficiência mental:
CONSTITUIÇÃO DE 1911 (a Republicana)
TÍTULO III
Da Soberania e dos Poderes do Estado
SECÇÃO 3
PODER JUDICIAL
Artº 60º
"Os juízes serão irresponsáveis nos seus julgamentos, salvo as excepções consignadas na lei".
Seguramente que esta mercê, por um lado, terá provocado, consoante os sectores da Sociedade em questão, desde gaudio a indignação e protestos e por outro, alguma coisa terá mudado no comportamento interno e externo/público dos juízes: afinal, mercês e condecorações só valem a pena se delas se fizer publicidade e uso.
Assim e sem prejuízo de melhor e mais bem documentada análise, estou em crer que a razão de ser deste dito - ou desta deriva - terá que ver com essa "renovada" ou acrescida autoridade dos juízes, que de alguma maneira passaram a julgar sem temer as consequências dos seus julgamentos errados. discricionários ou até afetados de parcialidade.
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(ver mais sobre o tema em http://corruptibile.blogspot.pt/2013/07/mando-eu-que-sou-juiz-na-ultima-decada.html)
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