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domingo, 7 de julho de 2013

Falo eu que sou juiz pela ponta do nariz

O dito que efetivamente conheci na mina infância nas terras da beira-Cávado (bacias do baixo Cávado) era este:

    - "Falo eu que sou juiz que vos cago no nariz"

Numa recolha de "rimas de tradição oral", cantilenas e similares, o autor (Machado.ND) inclui a versão ou variante do refrão - e que é a que dá o que dá o título a este 'post', "Falo eu que sou juiz pela ponta do nariz" - e coloca-a nas terras de Guimarães, Barcelos e Braga (Ave e Cávado) sem, contudo, a datar. Quanto ao significado - ou hermenêutica - não será arriscado avançar com estas possibilidades: tratava-se da crítica a quem falava do que não sabia ou não podia e além disso se sobrepunha aos demais, "falando pela ponta do nariz" (inopinadamente e sem ciência).

Perguntando-me - epistemologicamente, claro - sobre a origem e razão de ser da variante que ouvi recorrentemente desde a minha tenra infância (anos 50-60 - séc. XX), "Falo eu que sou juiz vos cago no nariz", teria que fazer um exercício de reflexão para arriscar uma ou duas respostas:

a) esta versão do "refrão" é mais política e denuncia a crítica a posições e ou juízos arbitrários, unilaterais e autoritários;
 
b) nos anos 50 - 60 do século passado, o Corporativismo "plebiscitado" de Salazar contava com três, a caminho de quatro décadas;
 
c) mas as pessoas a quem mais ouvia este "dito" não eram as que teriam idade para serem meus pais - nascidas de 1925 - 1930 para diante - eram as que tinham idade para serem meus avós, nascidos a partir de 1900, como era o caso concreto da minha avó Maria de Abreu Matos ou do meu tio-avô "Gaimunto" (Raimundo),
 
d) sendo discutível ou até pouco crível que tenha sido a "Ditadura" plebiscitada a 33 a dar aso a esta preciosidade da literatura popular que tinha a múltipla função de denúncia, protesto e desabafo (ou catarse). A criação/depuramento do "refrão" teria que ter tido lugar ou na I República ou ainda nos tempos da Monarquia Constitucional.

Trabalhando com o que sabemos da história e ainda à luz de acervos hemerotecários, resultará pacífico que havia mais liberdade de expressão - e menos condenações por crimes de opinião - no último meio-século da Monarquia Constitucional de que em toda a história das repúblicas (1910 a 2017).

Também no que toca à história de juízes e julgados, além de uma matriz que não se resumia a "juízes letrados" e uma organização judiciária estrita de Comarcas e Tribunais como a atual, até à I República havia uma cultura de responsabilidade/responsabilização jurídico-constitucional dos Juízes no desempenho das suas funções.

Curiosamente, foi a República, a da Laicidade e dos Valores e  da Ética Republicanos, o regime que se auto-propunha como o regime renovador restaurador dos direitos políticos - de cidadania e individuais, que se comprometia a pôr cobro ao que restava de privilégios dinásticos, foi este Regime que veio estender aos Juízes no desempenho da sua função uma garantia até então apenas consignada a dois grupos socias: as crianças e os cidadãos portadores de deficiência mental:
 
CONSTITUIÇÃO DE 1911 (a Republicana)
TÍTULO III
Da Soberania e dos Poderes do Estado

SECÇÃO 3
PODER JUDICIAL
Artº 60º
"Os juízes serão irresponsáveis nos seus julgamentos, salvo as excepções consignadas na lei".

Seguramente que esta mercê, por um lado, terá provocado, consoante os sectores da Sociedade em questão, desde gaudio a indignação e protestos  e por outro, alguma coisa terá mudado no comportamento interno e externo/público dos juízes: afinal, mercês e condecorações só valem a pena se delas se fizer publicidade e uso.

Assim e sem prejuízo de melhor e mais bem documentada análise, estou em crer que a razão de ser deste dito - ou desta deriva - terá que ver com essa "renovada" ou acrescida autoridade dos juízes, que de alguma maneira passaram a julgar sem temer as consequências dos seus julgamentos errados. discricionários ou até afetados de parcialidade.
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Mando eu que sou Juiz (II)

Mando eu que sou Juiz

Unfair Justice System

Na última década vem aumentando a insatisfação de alguns setores da sociedade, incluindo muitos Advogados, relativamente ao que que parece ser um aumento de poder autoritário dos juízes em Portugal, e começa a ser a acusação de que muitos juízes assumem uma postura nepótica, ao mesmo tempo que aumenta a sua latitude volitiva ao ponto de estes passarem a confundir a equidade com a discricionariedade, algo a que nunca poderá recorrer um Juiz subordinado aos princípios do Estado de Direito e do Poder Soberano do Povo, a Democracia.

Desde os que clamam contra a "República de Juízes" que parece às vezes querer sobrepor-se já não só à cidadania mas até aos demais Poderes do Estado, aos que reclamam que não andaram a lutar - e a arriscara liberdade e a vida - contra o regime de Salazar, para virmos a acabar num regime de salazarinhos de comarca ou juízo singular, passando pelos que receiam uma justiça repressiva e pelos que condenam o reforço do poder dos juízes que resulta das alterações de 2013 ao Código do Processo Civil promulgadas pelo XIX Governo - com a Ministra da Justiça Paula T. Cruz - , são muitos os que manifestam um descontentamento sustentado e argumentado, quer politicofilosofica, quer juridicoconstitucionalmente. No século XXI, o "Moleiro da Prússia" legitimador do poder do juiz é - e não pode ser mais de que - uma metáfora arcaica, ou uma "anedota", no sentido literário que atribui ao termo a língua espanhola [1].
 
Curiosamente, foi a República implantada em 5 de Outubro de 1910, a da Laicidade e dos Valores e  da Ética Republicanos, o regime que se auto-propunha como o regime renovador restaurador dos direitos políticos - de cidadania e individuais, que se comprometia a pôr cobro ao que restava de privilégios dinásticos, foi este Regime que veio granjear  aos Juízes no desempenho da sua função a garantia de irresponsabilidade e inimputabilidade:
 
CONSTITUIÇÃO DE 1911 (a Republicana)
TÍTULO III
Da Soberania e dos Poderes do Estado

SECÇÃO 3
PODER JUDICIAL
Artº 60º
"Os juízes serão irresponsáveis nos seus julgamentos, salvo as excepções consignadas na lei.
Curiosamente, insiste-se, foi a mesma República que se propunha pôr cobro ao que ainda restasse da "Sociedade de Mercês" do poder Real Dinástico a criar logo no artigo 60º da sua primeira constituição uma mercê (que se mantém à data): "Os juízes serão irresponsáveis nos seus julgamentos". Invocando alguns deles e o legislador ser essa uma condição indispensável para a Independência dos Juízes, mantém-se no séc. XXI a um Corpus Técnicoprofissional - ainda que superior - uma garantia que este partilha apenas com mais dois grupos sociais, as crianças e os cidadãos portadores de deficiência mental.
Valia a pena conhecer a lista de redatores da Constituição de 1911 e saber quantos desses relatores - participantes diretos ou por interposto aconselhado - seriam Juízes.
 
"Felizmente para o Povo Português", a partir do Golpe de 28 de Maio de 1926, começaria a ser instaurado em Portugal um regime moralizador restaurador dos costumes; este era o bondoso discurso dos que promoveram Salazar e apoiaram a criação do Estado Novo, cuja primeira constituição seria plebiscitada em 1933. E o que estabelecia a moralizadora Constituição de 33 quanto ao poder judicial?...
A Constituição de 1933 é fruto de um elaborado e planeado estudo feito ao longo de mais de um ano por um grupo de professores de direito convidados pessoalmente pelo próprio António de Oliveira Salazar (Autor: Imagem em domínio público) 
("Constituição Política da República Portuguesa")
Artº 119º
"Os juízes são irresponsáveis nos seus julgamentos, ressalvadas as excepções que a lei consignar"
Salazar era um "maganão". Sacrista, mesureiro, melífluo e oblíquo, obviamente que para lograr uma sociedade de "corporações" que apoiasse as suas políticas, teria que consentir privilégios às elites comerciais e financeiras, militares, judicias e religiosas; haveria um único inimigo comum, o povo, com o qual a relação do Estado (administração) era à partida de desconfiança, e uns restos das carbonárias a que mais tarde se juntariam os "agentes subversivos". Ora a julgar um subversivo ou um elemento do povo que não acadimasse as regras do Estado, que não fosse um ordeiro de bom pai e bom chefe de família, que erros poderia cometer um juiz?... Pelo contrário.
 
Depois de 48 anos de regime repressivo, vinha aí a Constituição de 1976, a da III República, a Constituição  do Estado de Direito Democrático, da Soberania Popular, a das DLG e dos direitos de primeira, segunda e terceira geração.

Depois de um 25 de Abril libertador, os poderes seriam equilibrados e subordinados à vontade e soberania do Povo e não subsistiriam Mercês, Castas, Ordens e outros corpus detentores de privilégios. Ou será que sim?
 
Constituição da República Portuguesa aprovada em 2 de Abril de 1976

A mioleira da Prússia

a "fábula" do moleiro prussiano (sim, fábula, era no tempo em que galinhas, coelhos e demais animais de quinta falavam e moleiros atreviam-se a desafiar o rei) é tão cansativamente inverosímil e tão infantilmente invocada por pessoas maiores, com idade para serem avós de netos - até a ouvi ao anterior Presidente do STJ e CSM - que chega até a causar-me vergonha alheia.

A historieta resume-se a isto: ali pele segunda metade do séc. XVIII, Frederico II teria implicado com um moinho que impedia a expansão do seu palácio, propôs.se a comprá-lo, o proprietário recusou-se a vender, Frederico II tê-lo-ia ameaçado de expropriação, ao que o Moleiro respondeu "ainda há juízes em Berlim.

A primeira coisa que me apetece perguntar a professores universitários e juízes desembargadores e conselheiros a quem ouvi referir em contexto institucional esta inverosimilhança é porque não invocam os Juízes de Caneças e que foram os que,
a) puniram o Rei D. José de Bragança por praticar adultério com a mulher de um dos Távoras;
Gomes Freire de Andrade.jpg
b) Absolveram os mesmos Távoras por terem disparado em defesa da honra contra uma carruagem que entrava furtivamente na sua propriedade, e que era, afinal, a carruagem do Rei adultero e adulterador;

c) e foram ainda os que impediram o Marquês de Pombal de ter praticado a tortura e chacina dos Távoras;

Como se sabe, após esse tiroteio, Sebastião José forjou uma tentativa concertada pelos Távoras e seus correligionários de regicídio contra D. José e I pretendeu exterminá-los a todos e ainda apropriar-se dos seus consideráveis meios de fortuna, tendo-o impedido de tais intentos os Juízes de Caneças, pares e coetâneos dos Juízes de Berlim e todos eles paladinos de moleiros, padeiros, ferradores e outros artífices...

Foram ainda os Juízes de Caneças que em outubro de 1817 - séc. XIX - impediram a Regência de enforcar onze cidadãos portugueses no Forte de São Julião da Barra e entre reles o jovem e brilhante General Gomes Freire de Andrade, não é verdade?...

E foram ainda estes juízes ou os seus descendentes que impediram as inúmeras expropriações, assim como a promulgação das Leis que vêm abrigando expropriações que chegam a ser esbulho descarado e que se praticam desde os tempos do Marquês até aso dias de hoje, e em que o expropriador pode ser a Administração Central, um presidente de câmara ou até o mais ignoto, primário e vingativo presidente de junta, como aconteceu há um par de anos numa freguesia próxima do Gerês.